Um senhor muito velho com umas asas enormes

Um senhor muito velho com umas asas enormes

 

Gabriel García Márquez (1968)

 

Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava a casa depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio. Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal, e que apesar de seus grandes esforços não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas.

Assustado com aquele pesadelo, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava pondo compressas no menino doente, e a levou até o fundo do pátio. Os dois observaram o corpo caído com um calado estupor. Estava vestido como um trapeiro. Restavam-lhe apenas uns fiapos descorados na cabeça pelada e muito poucos dentes na boca, e sua lastimável condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se refizeram logo do assombro e acabaram por achá-lo familiar. Então se atreveram a falar-lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas, e concluíram com muito bom juízo que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo a vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro.

— É um anjo — disse-lhes. — Não tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou.

No dia seguinte todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso. Contra o julgamento da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá-lo a pauladas. Pelayo o esteve vigiando toda a tarde da cozinha, armado com seu garrote de meirinho, e antes de deitar-se arrastou-o do lodaçal e o encerrou com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia-noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam matando caranguejos. Pouco depois o menino acordou sem febre e com vontade de comer. Então se sentiram magnânimos e decidiram pôr o anjo em uma balsa com água potável e provisões para três dias, e abandoná-lo à sua sorte em alto-mar. Mas quando saíram ao pátio às primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança diante do galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e atirando-lhe coisas para comer pelos buracos dos alambrados, como se não fosse uma criatura sobrenatural mas um animal de circo.

O Padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pelo exagero da notícia. A esta hora já haviam acudido curiosos menos frívolos que os do amanhecer, e haviam feito todo o tipo de conjeturas sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado prefeito do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na terra uma estirpe de homens alados e sábios, que tomassem conta do universo. Mas o Padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido forte lenhador. Junto aos alambrados, repassou num instante seu catecismo, e mesmo assim pediu que lhe abrissem a porta para examinar de perto aquele varão lastimável que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas distraídas. Estava atirado a um canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e os restos do café que lhe atiraram os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, apenas levantou seus olhos de antiquário e murmurou algo em seu dialeto quando o Padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu bom-dia em latim. O pároco teve a primeira suspeita de sua impostura ao comprovar que não entendia a língua de Deus nem sabia saudar aos seus ministros. Logo observou que visto de perto ficava muito humano: tinha um insuportável cheiro de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro, e com um rápido sermão preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou-lhes que o demônio tinha o mau costume de recorrer a artifícios de carnaval para confundir os incautos. Argumentou que se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos podiam sê-lo para reconhecer os anjos. Entretanto, prometeu escrever uma carta a seu bispo, para que este escrevesse outra a seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de modo que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.

Sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou-se com tanta rapidez, que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram que usar a tropa com baioneta para dispersar o tumulto que já estava a ponto de derrubar a casa. Elisenda, com a coluna torcida de tanto torcer lixo de feira, teve então a boa idéia de murar o pátio e cobrar cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou zumbindo várias vezes por cima da multidão, e ninguém lhe fez caso, porque suas asas não eram de anjo mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os enfermos mais desgraçados do Caribe: uma pobre mulher que desde menina estava contando as batidas do seu coração e já não lhe bastavam os números, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que fizera acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana empanturravam de dinheiro os quartos, e apesar disso a fila de peregrinos que esperava vez para entrar chegava ao outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. Gastava o tempo em buscar cômodo no ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno dos lampiões e das velas de promessa que encostavam nos alambrados. No princípio, trataram de que comesse cristais de cânfora , que, de acordo com a sabedoria da sábia vizinha, era o alimento específico dos anjos. Mas ele os desprezava, como desprezou sem provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por anjo ou por velho que acabou comendo nada mais que papinhas de berinjela. Sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Principalmente nos primeiros tempos, quando as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas, e os entrevados arrancavam-lhe penas para tocar com elas seus defeitos, e até os mais piedosos atiravam-lhe pedras, forçando a que se levantasse para vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram alterá-lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque estava há tantas horas imóvel que o acreditaram morto. Acordou sobressaltado dizendo disparates em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e deu um par de asadas que provocaram um redemoinho de esterco de galinheiro e poeira suja, e um temporal de pânico que não parecia deste mundo. Embora muitos acreditassem que sua reação não fora de raiva e sim de dor, desde aí trataram de não molestá-lo, porque a maioria entendeu que sua passividade não era a de um herói no uso de boa aposentadoria mas a de um cataclismo em repouso.

O Padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto esperava um julgamento final sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma perdera a noção da urgência. Gastavam o tempo em averiguar se o réu convicto tinha umbigo, se seu dialeto tinha algo que ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta de um alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de prudência teriam ido e vindo até o fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto fim às atribulações do pároco.

Aconteceu que por esses dias, entre muitas outras atrações das feiras errantes do Caribe, levaram ao povoado o triste espetáculo da mulher que se convertera em aranha por desobedecer a seus pais. A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas até permitiam fazer-lhe quaisquer perguntas sobre sua absurda condição, e examiná-la pelo direito e pelo avesso, de modo que ninguém pusesse em dúvida a verdade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. O mais triste, entretanto, não era sua figura absurda, mas a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça; ainda menina fugira da casa dos pais para ir a um baile, e quando voltava pelo bosque depois de haver dançado sem licença toda a noite, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades, e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. Seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caridosas quisessem pôr-lhe na boca. Semelhante espetáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível escarmento, tinha que derrotar mesmo sem querer o de um anjo altivo que mal se dignava a olhar os mortais. Além disso, os escassos milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a visão mas lhe nasceram três dentes novos, e o do paralítico que não pôde andar mas esteve a ponto de ganhar na loteria, e o do leproso em quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam brincadeiras, já haviam abalado a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou por aniquilá-la. Foi assim que o Padre Gonzaga se curou para sempre da insônia, e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos caminhavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada a lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com sacadas e jardins, com escadas bem altas para que os caranguejos do inverno não entrassem, e com barras de ferro nas janelas para evitar que entrassem os anjos. Pelayo além disso instalou uma criação de coelhos muito perto do povoado e renunciou para sempre a seu mau emprego de meirinho, e Elisenda comprou umas sandálias acetinadas de saltos altos e muitos vestidos de seda furta-cor, dos que usavam as senhoras mais invejadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi o único que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e queimaram gotas de mirra no seu interior, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de lixeira que já andava como um fantasma por todas as partes e estava tornando velha a casa nova. A princípio, quando o menino aprendeu a andar, cuidaram para que não ficasse muito perto do galinheiro. Mas logo foram esquecendo o medo e acostumando-se ao mau cheiro; antes que o menino mudasse os dentes, já fora brincar dentro do galinheiro, cujos alambrados podres caíam aos pedaços. O anjo não foi menos displicente com ele que com o resto dos mortais, mas suportava as maldades mais engenhosas com uma mansidão de cão sem ilusões. Ambos contraíram catapora ao mesmo tempo. O médico que atendeu ao menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo, e encontrou nele tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, entretanto, foi a lógica de suas asas. Ficavam tão naturais naquele organismo completamente humano, que não se podia entender por que não as tinham também os outros homens.

Quando o menino foi à escola, fazia muito tempo que o sol e a chuva haviam destruído o galinheiro. O anjo andava se arrastando para cá e para lá como um moribundo sem dono. Tiravam-no a vassouradas de um dormitório e um momento depois o encontravam na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo, que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava fora dos eixos que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, seus olhos de antiquário tornaram-se tão turvos que andava tropeçando nas colunas, e já não lhe restavam senão os canudos pelados das últimas penas. Pelayo jogou sobre ele uma manta e lhe fez a caridade de deixá-lo dormir no alpendre, e só então perceberam que passara a noite com febre, delirando em engrolados de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes que se assustaram, porque pensavam que ia morrer, e nem sequer a sábia vizinha pudera dizer-lhes o que se fazia com os anjos mortos.

Entretanto, não só sobreviveu a seu pior inverno, como pareceu melhor com os primeiros sóis. Ficou imóvel muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de grande pássaro velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tomava muito cuidado para que ninguém notasse, e para que ninguém ouvisse as canções de marinheiro que às vezes cantava sob as estrelas. Uma manhã, Elisenda estava cortando fatias de cebola para o almoço, quando um vento que parecia de alto-mar entrou pela cozinha. Foi então à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas de vôo. Eram tão torpes, que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve a ponto de destruir o alpendre com aquelas asadas indignas que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de descanso, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer jeito com um precário esvoaçar de abutre senil. Continuou vendo-o até acabar de cortar a cebola, e até quando já não era possível que o pudesse ver, porque então não era mais um estorvo em sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.

 

Foto: estação Brás do metrô de São Paulo.